John Philip Sousa: O Rei das Marchas e as Suas Raízes Portuguesas
- Nuno Margalha
- 7 de jun.
- 7 min de leitura
A história da música para bandas não se pode escrever sem mencionar, em letras sonoras e destacadas, o nome de John Philip Sousa. Para muitos, é um sinónimo de marchas militares, de desfiles vibrantes, de patriotismo norte-americano em forma de pauta. No entanto, há uma faceta menos conhecida deste gigante da música: as suas origens portuguesas. Sim, o compositor de The Stars and Stripes Forever era filho de um madeirense, e essa herança lusitana nunca deixou de o acompanhar.

As raízes: da Madeira para Washington
John Philip Sousa nasceu a 6 de Novembro de 1854 em Washington, D.C., capital dos Estados Unidos da América. O seu pai, João António de Sousa, era natural da ilha da Madeira, tendo emigrado para os Estados Unidos ainda jovem. Músico de profissão, João António ingressou na Banda dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos como trombonista, posição que ocupou durante vários anos.
A mãe de John Philip, Maria Elisabeth Trinkhaus, era de origem bávara. Desta união nasceu um filho que, desde tenra idade, mostraria uma inclinação inata para a música — e que acabaria por superar todos os seus mestres.
Apesar de nascido em solo americano, John Philip Sousa cresceu num lar com fortes influências europeias. O pai, português, transmitiu-lhe não só o gosto pela música como também um certo espírito disciplinado e honesto que moldaria a sua vida profissional. Embora a sua biografia tenha sido muitas vezes “americanizada”, Sousa nunca escondeu nem renegou a sua ascendência portuguesa — antes pelo contrário, orgulhava-se dela.
Formação musical e primeiros passos
Com apenas seis anos de idade, Sousa começou a ter aulas de música. Estudou canto, violino, flauta e vários instrumentos de sopro, e revelou desde cedo um talento invulgar.
Aos treze anos, quase por acaso, o pai impediu-o de embarcar numa digressão circense e inscreveu-o como aprendiz de músico na Banda dos Fuzileiros Navais, onde ficaria a estudar e a trabalhar durante vários anos.
Aos vinte anos, Sousa era já um músico completo. Tocava em orquestras, dirigia agrupamentos locais e dava lições de música. A sua carreira como maestro, compositor e organizador seria vertiginosa, marcada por rigor, inovação e uma profunda dedicação à arte de emocionar multidões.
A glória: o nascimento do “Rei das Marchas”
Em 1880, com apenas 26 anos, Sousa foi nomeado maestro da United States Marine Band, a banda oficial da presidência dos EUA. Sob a sua direcção, a qualidade artística do agrupamento atingiu níveis sem precedentes. Sousa reescreveu o repertório, elevou os padrões de execução e deu início a uma nova era na música militar americana.
Em 1892, após doze anos de serviço, Sousa deixou a banda militar e fundou a Sousa Band, uma formação privada que se tornaria célebre em todo o mundo. Com ela, Sousa percorreu os Estados Unidos, o Canadá, a Europa, a América do Sul e até a Austrália, apresentou centenas de concertos e conquistou públicos de todas as idades e nacionalidades.
Foi neste período que compôs as suas obras mais conhecidas, entre as quais se destacam:
The Stars and Stripes Forever (1896), a mais famosa marcha americana, hoje hino oficial das marchas dos EUA;
The Washington Post (1889), escrita a pedido do jornal homónimo;
Semper Fidelis (1888), dedicada ao Corpo de Fuzileiros Navais;
Liberty Bell (1893), celebrizada mais tarde como tema dos Monty Python.
Ao todo, Sousa compôs mais de 130 marchas, bem como operetas, valsas, peças sacras e hinos patrióticos. O seu estilo é inconfundível: claro, directo, rítmico, melodioso e com uma estrutura formal perfeitamente equilibrada.
Um invento que também nos toca: o Sousafone
Pouco se fala da faceta inventiva de Sousa. Insatisfeito com a sonoridade dos baixos nas bandas em movimento, Sousa colaborou com a empresa C.G. Conn para criar um novo instrumento: o Sousafone, uma tuba adaptada à marcha, com a campânula voltada para a frente.

Ao longo da história das bandas filarmónicas, poucos instrumentos testemunharam uma transformação tão engenhosa e funcional como o sousafone. Criado para resolver problemas práticos de projecção sonora e mobilidade, o sousafone rapidamente se afirmou como uma peça essencial nas formações em marcha. A evolução do sousafone reflecte tanto o engenho técnico dos seus criadores como as necessidades concretas dos músicos e do público. Como acontece com todos os instrumentos, a sua adaptação acabou por ultrapassar os limites da tradição — como se comprova no vídeo seguinte.
O Problema da Tuba em Marcha
No final do século XIX, o instrumento mais grave da família dos metais era a tuba, presente tanto em orquestras como em bandas. No entanto, a tuba tradicional apresentava dois grandes inconvenientes em contexto de marcha:
Era pesada e difícil de transportar em movimento, pois exigia força e equilíbrio do músico;
Projectava o som para cima, o que dificultava a audição do baixo em ambientes exteriores.
Foi com base nestas limitações que surgiu a ideia de criar uma tuba adaptada à marcha, com projecção frontal e estrutura mais ergonómica.
O Génio Prático de John Philip Sousa
A figura central desta história é John Philip Sousa, maestro e compositor norte-americano com raízes portuguesas. Insatisfeito com a sonoridade das tubas na sua banda, Sousa procurou uma alternativa que permitisse levar os graves à rua com mais eficácia.
Em colaboração com a empresa C.G. Conn, Sousa encomendou um instrumento novo, que reunisse:
Conforto de transporte;
Grande capacidade de projecção sonora frontal;
Som encorpado, adequado a desfiles e concertos ao ar livre.
Nascia assim, em 1893, o primeiro sousafone — ou sousaphone, em inglês — nome atribuído em honra do próprio maestro.
A evolução do sousafone

O Primeiro Modelo: O "Rain-catcher"
O protótipo de 1893 era em tudo semelhante a uma tuba helicoidal, com o tubo enrolado à volta do corpo do executante, mas com a campânula voltada para cima. Este modelo ficou conhecido como "rain-catcher" (apanhador de chuva), precisamente porque a abertura do instrumento parecia ideal para recolher aguaceiros indesejados durante actuações ao ar livre.

Apesar de inovador, este primeiro sousafone ainda não resolvia completamente o problema da projecção sonora — mas a base estava lançada.
A Revolução: Campânula Frontal
Nos primeiros anos do século XX, o modelo foi redesenhado para incorporar uma campânula orientada para a frente, como Sousa originalmente pretendia. Este novo desenho permitia que o som se dirigisse directamente para o público, aumentando a eficácia sonora durante desfiles, marchas e actuações em locais abertos.
Com este aperfeiçoamento, o sousafone assumiu a sua forma definitiva:
Tubo circular completo, a envolver o corpo do músico;
Descanso sobre o ombro esquerdo;
Válvulas acessíveis ao toque da mão direita;
Campânula larga e imponente, voltada para a frente.
Material e Construção: do Latão à Fibra
Originalmente construídos em latão, os primeiros sousafones eram pesados, e exigiam robustez física por parte do executante. Com o tempo, especialmente a partir da década de 1960, começaram a surgir modelos em fibra de vidro, muito mais leves e resistentes às intempéries — ideais para bandas escolares, juvenis ou para longas actuações em movimento.

Hoje em dia, coexistem três grandes tipos de sousafones:
Sousafone clássico em latão – som mais rico e tradicional, preferido por músicos profissionais;
Sousafone em latão niquelado ou prateado – estética mais refinada, por vezes usado em palcos;
Sousafone em fibra de vidro – leve, resistente, ideal para desfiles e uso prolongado.
Inovações Recentes
Apesar da sua aparência clássica, o sousafone continua a evoluir. Nos últimos anos, surgiram:
Sousafones eléctricos, com microfones embutidos e saídas de áudio para amplificação;
Modelos modulares, com peças desmontáveis para facilitar o transporte;
Sistemas de válvulas rotativas, mais comuns em países germânicos, embora menos adoptados no mundo anglo-saxónico e lusófono.
Também se registam experiências com campânulas direccionáveis, capazes de alterar a projecção sonora conforme o tipo de actuação.
Na Cultura Popular e na Tradição Filarmónica
O sousafone é hoje presença habitual em bandas marciais, filarmónicas, grupos académicos e bandas de jazz de rua. Tornou-se um símbolo visual da música em movimento, muitas vezes pintado com cores vivas ou com o nome da banda na campânula.
Em Portugal, o sousafone é particularmente valorizado em romarias, festas populares e desfiles. Substituiu quase completamente a tuba em contexto de marcha, graças à sua ergonomia e potência sonora.
Na Banda Filarmónica da Enxara, como em tantas outras, o sousafone é o alicerce sonoro de muitas actuações, sustenta o ritmo e completa a formação.
Um Instrumento Sempre em Marcha
A história do sousafone é a história de uma ideia simples e genial: adaptar o som grave da tuba às exigências do mundo em movimento. Evoluiu de uma solução prática para se tornar ícone cultural, instrumento de identidade e voz dos desfiles.
Com mais de um século de existência, o sousafone continua actual — não só pela sua forma funcional, mas porque representa a capacidade da música de se moldar à realidade e de caminhar com o povo, rua fora, compasso a compasso.
Uma identidade composta por muitas vozes
Sousa foi um homem profundamente americano no seu patriotismo, mas cosmopolita no seu gosto musical e fiel às suas origens europeias e portuguesas. Em entrevistas e textos pessoais, Sousa referia-se com carinho às suas raízes. Em várias ocasiões, tocou para comunidades luso-americanas e mantinha contacto com famílias portuguesas nos Estados Unidos.
É curioso pensar que o som mais emblemático da América — a marcha militar — teve como artífice um homem de sangue madeirense. Em tempos de emigração, de cruzamento de culturas e de afirmação nacional, Sousa representa um exemplo raro e inspirador de como a música portuguesa, mesmo que indirectamente, deixou a sua marca no mundo inteiro.
A herança na Banda da Enxara
Na Banda Filarmónica da Enxara, como em tantas outras bandas do nosso país, as marchas de Sousa fazem parte do repertório clássico. Tocam-se em desfiles, festas, concertos ao ar livre. Os nossos músicos dão inúmeras vezes vida à obra de um descendente de portugueses, cuja música continua a unir gerações e a fazer vibrar plateias.
Celebrar John Philip Sousa não é apenas reconhecer o génio de um compositor brilhante. É também reconhecer que a nossa cultura, mesmo dispersa, tem ecos e frutos nos lugares mais inesperados do mundo.
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