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Estudo: as Bandas da ilha grega Corfu - uma realidade próxima a longa distância.

Banda Filarmónica de Kapodistrias foto de:  MyKerkyra.com
Banda Filarmónica de Kapodistrias foto de: MyKerkyra.com

Corfu é uma ilha grega com cerca de 108.000 habitantes, localizada no mar Jónico, na costa ocidental da Grécia, próxima da fronteira com a Albânia e da região continental de Epiro. Ao longo da sua história, Corfu foi ocupada por várias potências estrangeiras — venezianos, franceses, russos e britânicos — o que contribuiu para a sua identidade cultural distinta, profundamente marcada por influências italianas e mediterrânicas. Esta identidade manifesta-se, entre outros domínios, na tradição musical da ilha.


Um dos fenómenos mais notáveis dessa tradição é a presença de dezoito bandas filarmónicas activas em Corfu, organizadas em torno de sociedades chamadas Philharmonic Societies. Estas sociedades funcionam como centros comunitários de ensino da música e desempenham um papel central na vida cultural e cívica da ilha.

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Em 2011, a investigadora Zoe Dionyssiou, professora da Universidade Jónica, publicou um estudo intitulado:

Music-Learning and the Formation of Local Identity through the Philharmonic Society Wind Bands of Corfu, inserido na colectânea académica Learning, Teaching, and Musical Identity: Voices Across Cultures, editada por Lucy Green

publicado pela Indiana University Press. Este trabalho baseia-se em entrevistas, observações de ensaios e concertos, e análise qualitativa de experiências vividas por músicos e alunos nas bandas de Corfu. O seu objectivo é compreender como o ensino musical nas bandas contribui para a construção da identidade local e como esse processo se articula com formas de aprendizagem não formal e informal.


A distinção entre ensino formal e informal é um dos pontos-chave do estudo. O ensino formal caracteriza-se por estruturas hierarquizadas, programas curriculares definidos, avaliação sistemática e métodos pedagógicos institucionais — como os que se encontram em conservatórios ou escolas oficiais. O ensino informal, por contraste, ocorre em contextos sociais mais fluidos, baseia-se na observação, imitação, prática conjunta e transmissão entre pares. Entre esses dois polos, surge o ensino não formal: organizado mas não institucional, estruturado mas flexível, muitas vezes com objectivos culturais e comunitários mais do que académicos.


Este artigo organiza-se em cinco capítulos, cada um aborda um lado do estudo de Dionyssiou, todos estes temas estão muito mais próximos de nós do que se possa pensar.

Capítulo I – A Porta de Entrada: Porque se entra numa banda?


Sociedade Filarmónica de Skripero - foto de: MyKerkyra.com
Sociedade Filarmónica de Skripero - foto de: MyKerkyra.com

Segundo Dionyssiou, a entrada nas bandas filarmónicas de Corfu não resulta de uma decisão pedagógica ou artística individual, mas de uma norma social enraizada. A maioria das crianças começa a sua participação por incentivo dos pais, num gesto que reflecte tanto aspirações familiares como a tradição local. Tocar numa banda é considerado um rito de passagem, tão natural como aprender uma língua estrangeira ou praticar desporto.


As bandas oferecem os instrumentos gratuitamente, e as aulas são acessíveis a todos, independentemente do contexto económico. Os depoimentos recolhidos pela autora revelam que, embora muitas crianças resistam inicialmente — em especial quando lhes é atribuído um instrumento que não desejavam — acabam por desenvolver um forte vínculo emocional à banda. Participar numa marcha ou num concerto público torna-se uma experiência marcante, geradora de pertença e orgulho.


Esta dimensão comunitária do ingresso numa banda distingue-se radicalmente das motivações presentes no ensino formal, onde o percurso musical é frequentemente decidido com base em critérios de talento individual, desempenho técnico ou objectivos profissionais. Em Corfu, o acesso é universal e o critério principal é a vontade de integrar um colectivo.



Capítulo II – O Modelo Pedagógico: Aprender com os Outros, Aprender com o Corpo


Uma das conclusões mais reveladoras do estudo de Dionyssiou prende-se com a forma como se aprende a tocar música nas bandas de Corfu. O processo pedagógico é eminentemente prático, relacional e cumulativo. Não se aprende por manuais, nem por sequências didácticas formais, mas por convivência, observação e repetição.


Filarmoniki Etaireia Kerkyras “Palaia”
Filarmoniki Etaireia Kerkyras “Palaia”

Os testemunhos recolhidos descrevem um tipo de aprendizagem em que o ensino directo é escasso ou inexistente. Muitos músicos relatam que ninguém lhes explicou como tocar o instrumento: aprenderam a partir do momento em que começaram a ir aos ensaios, observando colegas mais velhos, ouvindo as peças tocadas várias vezes, tentando replicar o som. Em certos casos, passaram meses a transportar o instrumento sem conseguir extrair qualquer som, até que alguém, de forma informal, lhes mostrou o funcionamento.

Este tipo de aprendizagem é designado por Lucy Green, a autora deste estudo, como informal learning e caracteriza-se por:


  • aprendizagem autodidacta e colaborativa;

  • ênfase na escuta e na memória;

  • ausência de avaliação formal;

  • ausência de diferenciação clara entre ensino e performance.


Apesar das fragilidades técnicas associadas — como lacunas na leitura musical, na respiração ou na articulação — muitos músicos formados neste contexto desenvolveram uma grande resistência física, sentido de grupo e adaptabilidade. A prioridade das bandas não é a excelência técnica individual, mas a capacidade de tocar em conjunto num contexto socialmente exigente: marchas, procissões, festas populares.


Este modelo contrasta com o ensino formal, que privilegia o domínio técnico, o solismo e a progressão individual. No ensino formal, o erro é sinal de falha. No ensino informal, o erro é parte da aprendizagem. Nas bandas de Corfu, os alunos não são preparados para competir em concursos, mas para desempenhar um papel activo e útil na comunidade.



Capítulo III – Repertório: Música como Memória e Continuidade


Filarmoniki Etaireia Kerkyras “Palaia”
Filarmoniki Etaireia Kerkyras “Palaia”

O repertório desempenha um papel central na vida das bandas filarmónicas de Corfu. Mais do que uma escolha estética ou técnica, trata-se de um território simbólico que espelha a história, a memória e a identidade da comunidade. As bandas tocam predominantemente marchas, aberturas e fantasias adaptadas de óperas e peças clássicas, bem como música tradicional local.


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Muitos dos músicos entrevistados relatam que as peças que tocam hoje são as mesmas que ouviram quando eram crianças e que os seus pais ou avós também tocaram. Esta continuidade é vivida como uma forma de estabilidade cultural e de pertença: tocar uma determinada marcha em determinada celebração religiosa é reviver colectivamente um passado comum. Não há, por regra, renovação frequente do repertório. Algumas bandas tocam, há décadas, as mesmas partituras nos mesmos contextos.


Contudo, este património musical inalterado é também motivo de frustração, sobretudo entre os músicos mais jovens ou com formação académica. Estes manifestam o desejo de explorar outros géneros — jazz, música latina, composições contemporâneas — e apontam a estagnação do repertório como sinal de conservadorismo institucional.


Do ponto de vista pedagógico, a repetição sistemática do repertório existente permite aos alunos uma maior familiarização auditiva, contribuindo para a aprendizagem por imitação e memória. Mas, ao mesmo tempo, pode limitar a criatividade, a capacidade de leitura à primeira vista e o contacto com outras linguagens musicais.


O repertório, neste contexto, é simultaneamente ferramenta de ensino, instrumento de coesão e símbolo identitário. A sua manutenção reforça a ligação intergeracional e a continuidade cultural, mas coloca o desafio de conciliar tradição e inovação, repetição e descoberta.



Capítulo IV – Hierarquias, Estrutura Social e Conflitos


O estudo de Zoe Dionyssiou revela que, sob a superfície de continuidade e pertença, as bandas filarmónicas de Corfu são palco de múltiplos conflitos latentes. Esses conflitos, embora raramente assumam a forma de confrontos directos, manifestam-se em tensões geracionais, estéticas, organizacionais e pedagógicas que atravessam o quotidiano das bandas.


Banda Filarmónica de Sinarades
Banda Filarmónica de Sinarades

Conflito geracional


O primeiro e mais visível é o conflito geracional. Músicos mais velhos, com décadas de presença na banda, detêm muitas vezes posições de poder simbólico e logístico, independentemente do seu nível técnico. Já os mais jovens, mesmo aqueles com formação superior em música, encontram barreiras no acesso a solos, bons instrumentos ou decisões programáticas.


“Há hierarquia, mas não pela qualidade de quem toca. É pelo tempo que lá está.” – Maria
“O pessoal mais velho ficava com os instrumentos novos. Nós, os mais novos, ficávamos com os estragados.”– Harry

Esta estrutura rígida, muitas vezes informal mas altamente respeitada, pode gerar frustração e afastamento por parte das novas gerações, que sentem que o seu mérito não é reconhecido.


Sociedade Filarmónica de Corfu
Sociedade Filarmónica de Corfu

Conflito entre tradição e modernidade pedagógica


O segundo foco de tensão está na relação entre ensino empírico e ensino estruturado. Muitos dos professores ou orientadores nas bandas são músicos práticos, sem formação académica. Ensinam por experiência e intuição, mas não dominam metodologias sistemáticas.


Sociedade Filarmónica de Corfu. © AP Photo/Thanassis Stavrakis
Sociedade Filarmónica de Corfu. © AP Photo/Thanassis Stavrakis
“Durante meses, só carregava o instrumento para casa e para os ensaios. Ninguém me disse como se tocava.” – Patroclos
“Aprendemos por tentativa e erro. Como ninguém sabia explicar, perguntávamos a alguém que estivesse a estudar em Atenas e trazia umas dicas nas férias.” – Costas

Esta ausência de estrutura afecta directamente a qualidade da formação, em especial para os alunos com ambições profissionais. Muitos deles só aprendem conceitos básicos — como respiração ou embocadura — ao entrar numa universidade de música.



Conflito estético e repertorial


A manutenção do mesmo repertório durante décadas é interpretada por alguns como expressão de identidade e continuidade, mas por outros como sintoma de estagnação.

“Tocamos sempre as mesmas marchas. Não há espaço para nada novo.” – Elli
“Gostava de tocar jazz ou bandas sonoras, mas dizem que isso não é para banda.” – Maria

Os músicos mais jovens expressam desejo de introduzir novas sonoridades e desafios técnicos. Já as direcções e os músicos veteranos temem perder o reconhecimento público associado à tradição. Esta tensão cria um bloqueio criativo e reduz a motivação de muitos jovens integrantes.





Conflito organizacional e disciplina militarizada



A estrutura das bandas segue muitas vezes um modelo quase militar, com ensaios frequentes, regras rígidas de apresentação pública e hierarquia comportamental.

“Sinto-me como um soldado. Falam-nos de forma brusca e esperam obediência, não criatividade.” – Maria
“A banda segue o modelo do exército: o velho contra o novo.” – Harry

Esta cultura de obediência e ordem pode ser eficaz para garantir uniformidade nas apresentações, mas reprime a expressão pessoal e o espírito artístico dos músicos, sobretudo os mais jovens ou com uma visão mais contemporânea da prática musical.




Conflito de prioridades: prestígio vs. qualidade artística



Por fim, há um conflito entre os objectivos de representação pública e os objectivos artísticos ou pedagógicos. As comissões administrativas, geralmente compostas por membros seniores da comunidade, colocam frequentemente a visibilidade mediática e a presença em cerimónias acima da qualidade musical ou da inovação educativa.

“Querem que pareça arte, mas não se preocupam em fazer arte.” – Harry
“O objectivo não é melhorar a banda, é que apareça no jornal local.” – Costas

Este conflito gera frustração entre músicos que querem crescer artisticamente e encontram resistência por parte da liderança institucional.




Maestros vs. Direcção: Tensões de liderança artística



Apesar de não serem frequentemente discutidos em público, os conflitos entre os maestros e os directores das bandas surgem como uma camada adicional de tensão.


Muitas vezes, os regentes são músicos mais jovens ou formados noutras cidades, com ideias inovadoras sobre pedagogia, programação e dinâmica ensaística. No entanto, encontram-se limitados pela vontade conservadora da direcção.


“Há discussões entre os regentes e a direcção. Os regentes querem fazer coisas novas, mas os directores dizem que não é o momento.” – Maria
“Quando o maestro sugeriu tocar uma peça diferente, disseram-lhe que o público não ia gostar.” – Harry

Estes episódios ilustram um tipo de conflito onde o poder simbólico e logístico se sobrepõe à liderança musical, afectando directamente o crescimento artístico da banda.



Tecnologia e tradição: quando o futuro é mal-vindo


Outro foco emergente de tensão prende-se com o uso de novas tecnologias e métodos digitais.

Músicos mais jovens, habituados a usar software como Finale ou MuseScore, ou a aprender com vídeos e gravações online, sentem-se limitados pelo conservadorismo técnico das bandas.


“Sugeri gravarmos os ensaios para podermos corrigir os erros, mas disseram-me que não era necessário.” – Costas
“Falei de usarmos o Finale para reescrever as partituras antigas, mas disseram-me que era melhor manter como está.” – Elli

Esta resistência à tecnologia decorre muitas vezes de um receio simbólico: perder o vínculo com a tradição oral, com os manuscritos históricos, com a transmissão directa de músico para músico. No entanto, revela também a necessidade urgente de integrar ferramentas que potenciem a qualidade e eficiência do trabalho musical.


Estes conflitos não significam que as bandas estejam em crise — pelo contrário, a sua vitalidade reside também na gestão dessas tensões.

No entanto, apontam para a necessidade de criar espaços de diálogo intergeracional, de repensar métodos de ensino, de diversificar o repertório e de clarificar as prioridades educativas. Só assim será possível preservar o património sem o cristalizar, e formar músicos sem os formatar.


Referência:

Dionyssiou, Z. (2011). Music-learning and the formation of local identity through the Philharmonic Society Wind Bands of Corfu. In L. Green (Ed.), Learning, Teaching, and Musical Identity: Voices Across Cultures (pp. 145–156). Bloomington: Indiana University Press.

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